O ano é 2025. Estamos no Brasil. E quem aqui escreve é uma mulher parda, do nordeste do país, feminista e que ama dançar. Localizo de onde escrevo e a experiência de mulher que consigo alcançar. Não existe um “ser mulher” universal, assim também não existem “corpos femininos” que vivam a mesma experiência. A experiência é sempre única e subjetiva.
As vivências das mulheres não são as mesmas e nem poderiam ser, são interseccionadas por fatores diversos como etnia/raça, idade, classe social, cis/trasngeneridade, aspecto socioculturais e temporalidades. Considerando tudo isso, dentro da categoria gênero, podemos dizer que os corpos femininos, na sociedade em que vivemos estão sob forte vigilância, pressão e opressão. “Qual peso? Qual idade? Já está na hora do botox? Qual tipo de pele? Faz ou não depilação? Estrias, celulites, foliculites, que horror! Sorria muito (mas contidamente)! Reclame menos! Fale mais baixo! Rebolar é vulgar!”. Corpo e comportamentos femininos têm sido alvos de controle, no decorrer de séculos a fio (não sem contestação e insurgências, claro).
São muitas, e incontáveis, as nuances de análise em que querem aprisionar a potência de nossos corpos de mulher. Obviamente, toda essa pressão estética, não é apenas estética, faz parte da estrutura cruel de uma sociedade patriarcal (sistema de dominação masculina existente em diferentes culturas e épocas) que tem por finalidade colocar mulheres em um lugar de subalternidade e de assujeitamento de suas potências e singularidades. O longo processo histórico de desapropriação de mulheres da beleza e grandeza de seus próprios corpos criativos, e, potencialmente, criadores de vida, foi a estratégia utilizada pelo patriarcado para constituir o alojamento das mulheres dos espaços públicos e da agência na vida coletiva.
Não nos enganemos: Corpo, mente e ação no mundo estão fortemente associados. Regular os corpos, foi e é, estratégia histórica de controlar as mentes e reduzir a força da mulher no mundo. Inicialmente, a regulação dos corpos femininos, associou-se a necessidade de acumulação do capital, mas com o decorrer dos séculos, esse sistema social baseado na hierarquia de gênero, se expandiu para níveis políticos, econômicos e culturais mais complexas. Em suas bases, está a distinção “natural” (bio/fisiológica) entre homens e mulheres e essa distinção servindo a abissais desigualdades dos papéis sociais e de acesso a espaços de poder entre os gêneros.
Nesse contexto, as formas de distrair, reduzir, aprisionar e objetificar os corpos e as experiências das mulheres em sociedades de bases patriarcais, como a nossa, são diversas e se reconfiguraram no decorrer dos séculos, conforme nos apontam os estudos feministas, desenvolvidos, sobretudo a partir de século XX. Em “ o mito da beleza” (1991), Naomi Wolf explora como as imagens de beleza (pautada em estéticas corporais específicas) são usadas contra mulheres, deixando-as constantemente inseguras, insatisfeitas com seus próprios corpos e exaustas em uma corrida de metas inalcançáveis. Mas se as histórias não são feitas apenas de macroestruturas (a exemplo do patriarcado), podemos dizer que as mulheres no decorrer de suas existências encontraram e encontram formas diversas de transgredir essa ordem, criando e recriando sua agência nos tempos e espaços.
A dança foi, e é, sem dúvidas, uma das suas mais potentes ferramentas de encontro e expressão. Sabemos que, desde os mais remotos tempos, mulheres e homens, cultivavam formas expressivas diversas como as danças, os jogos e as lutas. O ser humano primitivo dançava, sobretudo ritualisticamente, por inúmeros significados: caça, colheita, alegria, tristeza. Assim, a dança era praticada por homens e a presença das mulheres aconteciam em algumas celebrações e variava de acordo com a cultura de cada comunidade.
Contudo, tratando-se do mundo ocidental, a influência das religiões monoteístas, sobretudo do cristianismo, criou uma oposição corpo e espírito, sagrado e profano que rejeita as experiências corporais e culpabiliza o corpo. Nesse contexto, a dança, enquanto forma expressiva da humanidade, por meio do corpo, passa ser vista como profana e as danças populares, festas e celebrações passam a ser objeto de repressão e proibições durante séculos, construindo um imaginário que ainda ocupa espaço e subvaloriza a dança na sociedade. Atualmente, estamos vivendo um processo de mudança desse paradigma, posto que a dança é cada vez mais procurada como em espaços de socialização, como expressão artística e também prática de atividade física para melhoria da qualidade de vida e valorização da autoestima.
Quando falamos da vivência de mulheres em uma sociedade patriarcal, que historicamente, negou, silenciou e apagou elementos associados ao “feminino”, a dança enquanto espaço do sensível e criativo é capaz de transformar a experiência, individual e coletiva das mulheres, a partir de mudanças nas visões, nos significados das coisas e nas ações cotidianas. Do ponto de vista pessoal, posso afirmar que as experiências de dançar me fizeram desejar constantes expansões do que sou enquanto mulher e das coisas que faço enquanto artista e educadora nos mais diversos contextos sociais e culturais.
Dançando acesso uma linguagem aberta, dinâmica e inacabada de um corpo em permanente criação e atualização de sentidos, significações e ações, de renovação e ressignificação sociocultural, que resiste, criativamente, às opressões e silenciamentos vivenciados. Existe algo mágico que acontece quando danço! Não tô falando de saber coreografia, fazer passo certo ou ter técnica perfeita. Tô falando daquele momento em que posso fechar os olhos, sentir o som batendo no peito e deixar o corpo guiar. É nesse instante que, pra mim, a dança se torna pura liberdade. Por muito tempo, crescendo em um mundo machista e misógino, fui ensinada a “me comportar”, a “não ocupar muito espaço”, a “ser discreta” e a odiar meu corpo. Muito provavelmente, por isso, quando comecei a dançar de verdade, foi como se algo dentro de mim tivesse despertado e se libertado para questionar “verdades” e paradigmas sobre ser mulher e sobre meu corpo. Foi a dança que me permitiu me olhar com mais respeito, cuidado e amor. Como se eu finalmente pudesse existir inteira, sem medo, e aos poucos, me destituindo das amarras do julgamento. Dançar me reconecta comigo mesma. Me lembra que o meu corpo é meu — com todas as curvas, marcas, potências e limites. Me mostra que posso sentir prazer em me movimentar, que posso ser sensual, forte, leve ou intensa — tudo ao mesmo tempo.
A dança é linguagem, expressão e, acima de tudo, uma forma poderosa de reconexão com a própria essência. Para nós, mulheres, dançar é também um ato de resistência contra todos os processos de repressão de nossos corpos e subjetividades. É levantar-se, mover-se e ocupar espaços que por tanto tempo tentaram nos afastar. Cada passo que damos na dança é um gesto em busca da liberdade para ser, fazer e desfazer entraves e silenciamentos. Ao movimentar o corpo, quebramos padrões impostos, sacudimos medos antigos e, muitas vezes, reencontramos partes de nós que estavam adormecidas. A dança nos permite ouvir nossa própria voz — aquela que grita por autenticidade, prazer e força.
Em uma sociedade que frequentemente dita como devemos nos comportar, vestir ou sentir, dançar é um ato revolucionário. Nos palcos, nas aulas de dança, na sala de casa ou no meio da rua — quando dançamos, nos apropriamos do nosso corpo e reafirmamos que ele nos pertence. E esse é um dos atos mais potentes de empoderamento. Além disso, a dança cria redes de afetos e apoio entre mulheres. Cria comunidades. Ela nos conecta com outras mulheres, constrói irmandades e fortalece vínculos. É comum em aulas de dança, rodas e festivais, vermos olhares que se reconhecem, corpos que se apoiam e histórias que se entrelaçam. E é no coletivo que o empoderamento se potencializa: quando percebemos que não estamos sozinhas e que, nas trocas de experiências, no compartilhamento de saberes, coletivamente, somos mais fortes e felizes, muitas vezes.
Não importa se no axé, no ballet, no samba, nas danças orientais, na dança contemporânea ou em qualquer outro estilo, dançar é permitir-se viver no presente. É dizer sim à corporeidade, às emoções e à potência de ser mulher. Eu desejo, com todo meu coração, que a dança continue sendo esse canal de cura, força e revolução para todas nós. Porque quando uma mulher dança, ela não apenas se move — ela transforma a si mesma, ao seu entorno e constrói novas possibilidades de ser mulher no mundo para nós e para as mulheres que virão depois de nós. Por isso, apenas dancem, sempre que possível, dancem, porque dançar é mais do que mexer o corpo. É se permitir sentir, soltar travas e curar feridas. Quando dançamos, nos recriamos, ocupamos o nosso espaço — com alma, com presença e com coragem. Vocês merecem, nós merecemos, experienciar toda a potência dos nossos corpos de mulheres.
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