Há músicas que não apenas tocam nossos ouvidos, mas despertam movimentos que já estavam gravados na alma. 'Buddaham Nextro' — com seus mantras eletrônicos e batidas hipnóticas — foi a faixa que escolhemos para dançar não só com o corpo, mas com a história que ela conta. Em nossa coreografia de Tribal Fusion desenvolvida por Halima Saat, buscou-se traduzir em gestos a essência de Shiva: o deus da transformação, cuja dança cósmica (Tandava) equilibra criação e destruição do Universo. E como unir essa simbologia ancestral a um estilo contemporâneo? Foi essa jornada que tentarei descrever aqui.
"Buddaham" — faixa do álbum The Uprising (2020) da banda Nextro — não é apenas uma música eletrônica: é uma jornada sonora que une o sombreado introspectivo do tribal fusion com a sacralidade de mantras repetidos. Essa dualidade nos conquistou para uma coreografia onde os passos não seguem apenas as batidas da música, mas a interpretam como um ritual. As batidas pulsantes ecoam o damaru (tambor de Shiva), enquanto os vocais em sânscrito nos puxam para um estado quase meditativo — como se cada movimento fosse uma oferenda ao Deus da transformação e nos transporta a sentir essa transformação meditativa ao executar os movimentos.
Na prática, traduzimos isso em espirais de quadril que desenham mandalas no palco, mãos que se delineiam em mudras (gestos sagrados) e pés que marcam o chão como Shiva em seu Tandava — a dança cósmica. O Tribal Fusion, com sua liberdade de fusão, nos permitiu beber da fonte indiana sem ser literal: não imitamos Shiva, dançamos com ele e o invocamos para apreciarmos essa atmosfera em conjunto.
Percebemos que os movimentos de quadril e braço do Tribal Fusion, tão pulsantes e orgânicos, ecoavam as representações clássicas de Shiva como Nataraja (sua representação como Deus da dança). Aquele instante em que o deus, com uma perna elevada, esmaga a ignorância sob seus pés, tornou-se nosso guia: nos ensaios, cada passo foi um exercício de doação, exigindo não apenas destreza corporal, mas uma entrega espiritual. Lapidamos gestos até que deixassem de ser “passos” e virassem símbolos em movimento — a curva do quadril como uma espiral de criação, os braços quebrando o ar como o Tandava da destruição.
Dançar ‘Buddham Nextro’ foi, acima de tudo, reconhecer o peso e a leveza da herança que carregamos. Em cada batida, recordava que aquela música não era só nossa: pertencia a mantras ancestrais, a um povo, uma cultura, a um sagrado que resiste no eco das batidas e nuances dos tambores e sonoridade ditas. O Tribal Fusion, com sua liberdade híbrida, não nos pediu para copiar Shiva — nos deu licença para reescrevê-lo, com os nossos corpos como tinta. E para mim, isso talvez seja a essência da dança: criar e destruir versões de nós mesmas a cada ritmo, até que só sobre o que é puro e genuíno.
Vídeo da apresentação de Buddaham:
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