Disciplina X perfeccionismo - Por Halima Saat



Quando pensamos em disciplina já vem logo a ideia de sacrifício, dedicação, esforço e obrigação, né? A ideia de ceder aos prazeres imediatos (eg. deitar no sofá) e deixar de lado prazeres a longo prazo (eg. execução impecável de uma sequência coreográfica) pode ser realmente tentadora e de fato é um divisor de águas em todas as áreas da vida, incluindo na dança. 

As pessoas podem ser rotuladas de várias formas e uma delas é pelo seu perfil comportamental. Claro que isso é subjetivo e uma mesma pessoa pode tomar uma decisão por impulso num dia e noutro ser mais racional. A questão toda é a predominância deste padrão e como tomar consciência de si nestes momentos. A gente sempre tende a comparar uma atitude preguiçosa com uma disciplinada, mas e quanto ao outro extremo? Onde a disciplina passa a ser exarcebada gerando um corpo exausto e muitas vezes lesionado? 

Aqui entra o ponto central deste texto: quando nossa paixão por algo é tão alta que esquecemos de nós no meio do caminho e doamos nossa energia vital desequilibradamente. O que fazer? Como não sucumbir? Seria isto uma fuga inconsciente? Onde está o limiar entre um treino saudável e um treino quase que obsessivo pela perfeição?

Quantas vezes me deparei comigo mesma sentada no chão de frente pra minha imagem no espelho com o corpo dolorido de tanto dançar, várias horas sem comer (porque a fome nem dava o ar da graça) e a cabeça fervilhando durante um processo de criação coreográfica em busca da sequência perfeita?

Quantas vezes não consegui dormir porque durante a madrugada me vieram ideias inspiradoras e eu precisei me debruçar sobre elas? Quantas vezes fiz maratona de estudo de técnicas de movimentos e só descansei quando concluia a meta diária?

Quantas vezes dei play na mesma coreografia de minha autoria pra encontrar erros e pensar em lapidações ou em como eu poderia modificá-la até ficar satisfeita? Esse perfeccionismo não é algo que se restringe a mim, mas com certeza à várias e vários coreógrafos mundo afora. A busca pela arte sublime, impecável, divina.

Existe algo de belo nisso mas também de patológico. E é sobre isso que gostaria de escrever para vocês hoje.

    

    Sempre fui uma pessoa ansiosa e a prática de Yoga de fato tem me ajudado a lidar com isto. Entretanto teve um periodo da minha vida que regredi espiritualmente e minhas meditações, antes diárias, passaram a ser inexistentes. Desaprendi a arte do desapego naquela época e, dominada pelo Ego, enraizei aversões e apegos dentro de mim, ao ponto de me tornar cegamente focada na ilusão de buscar a perfeição da minha dança. Eu queria muito mesmo me ver dançando e me sentir satisfeita.

Queria aprender muito em pouco tempo e isso me trouxe habilidades, porém as mazelas a minha psiqué não passaram despercebidas, como a ansiedade, a compulsão alimentar e uma certa agressividade intolerante diante dos obstáculos que a vida naturalmente apresenta na minha trajetória. Eu vivia frustrada, reclusa num mundo interior que não aceitava as condições do mundo exterior. Manter meu corpo em movimento rítmico era minha fuga e meu alívio. E o erro foi eu me agarrar a isto desesperadamente. 

    A dança é uma ferramenta que pode ser usada com sabedoria ou com ignorância. Foram necessários 12 anos para eu entender isto na prática. De fato, fazer o que amamos é estarmos alinhados com nosso propósito, porém trago aqui uma reflexão sobre a forma como fazemos e sobre nos percebermos no processo constantemente. A paixão gera uma motivação absurda dentro da gente mas ela é cega e nos torna dependentes. 

    Transmutar a paixão em amor nos faz ter um olhar mais humano da nossa dança e da dança do outro. É quando ganhamos maturidade e sabemos respeitar os limites que não prejudicam nossa saúde física, mental, emocional e espiritual. Nesta nova fase, você aprende a equilibrar o sentir e o pensar, o improviso e a coreografia, o expressivo e o técnico, o fluir e o firmar. As dualidades não se chocam, mas se complementam. 

Não é fácil se desapegar da busca pela perfeição, mas também não é impossível. Quando você compreende que o caminho vale mais à pena de ser admirado e contemplado (no presente momento) e que a aceitação da realidade nos torna mais humanos e fortalece nossos laços afetivos, o perfeccionismo cede espaço para uma disciplina orgânica e saudável que nos forja no tempo certo, no tempo natural das coisas, considerando uma visão integrada do Ser. 

    Isso me faz lembrar de um aprendizado que tive na pré-adolescência: o professor mostrou um botão de rosa vermelha fechado e nos perguntou "o que acontece se eu quiser abrir forçadamente suas pétalas?" e a turma respondeu "vai danificá-la ou vai matá-la". Tentar acelerar nosso tempo (e isso vale pra tudo na vida) é realmente agressivo e desnecessário. Nossa dança é como uma rosa. Ela tem o seu tempo para desabrochar e isso requer muita paciência e cuidado. 

    O solo com adubo é como o meio favorável para sua evolução (apoio de professores, ambiente acolhedor e os estímulos necessários para você forjar sua dança). A água é o seu tempo de dedicação e, com ele, a bagagem técnica que você for absorvendo. Se a água for pouca, vai secá-la, e se for muita de uma vez, vai afogá-la. 

O limiar entre a disciplina automotivada e o perfeccionismo patológico reside no grau de consciência que você decide ter no processo. Daí te pergunto: o que faz mais sentido pra você? Simplesmente dançar ou buscar dançar de uma forma específica? 

    Se a resposta for as duas coisas, certamente você vê a dança como um meio terapêutico de autoexpressão e uma fonte desafiadora de autossuperação, respectivamente. Só não se perca no caminho, dance de forma integrada mantendo sua identidade, se descobrindo, se reinventando, se desenvolvendo a cada passo. Segure sua própria mão, não se deixe ir, esteja muito presente, inteiro(a) e tudo fará mais sentido. Que a sua dança lhe dê os frutos da perseverança com discernimento, da criatividade com organicidade e do amor com sabedoria. 🌹 

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Comentários

  1. Acho vocé uma mulher incrível. Aquariana nata. Uma visionária.Admiro muito seu trabalho e a forma como você acredita nos projetos que desenvolve. Seu texto, encantador. Escrever nos liberta tanto. Voltarei aqui mais vezes.

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